sexta-feira, 28 de outubro de 2016

#26 - BÚZIO DO MAR, Afonso Duarte


Praguejam pescadores: Ora esta, ora esta,
O mar na praia é um tambor em festa!

Danado e rouco ele há lá quem o fateixe!
O mar não anda bom...
E som, e som, som-som,
deita a fugir o peixe.

Meus patrícios, poveiros tal e qual
É a nobreza maior de Portugal!

Mesmo sou duma aldeia à beira-mar,
E ouço-o bem duas légias em redol:
Meio ano a lavoirar,
Outro meio ao anzol!

Meus patrícios cada qual
Tem o seu bote que é o seu casal.

Mas, o Oceano, o mar não anda bom:
Ondas são trambulhões, e trambulhões de som!

Ó mar, meu brutamontes,
Música, deixa ouvi-la da noitinha:
Eu quero ouvir o murmurar das fontes
Que a noite já se avizinha...

sexta-feira, 21 de outubro de 2016

#25 - DOIS POEMAS DA PRAIA DA AREIA BRANCA, Sidónio Muralha

1

Na Praia da Areia Branca
os búzios não falam só do mar:
-- falam das pragas, dos clamores,
da fome dos pescadores
e dos lenços tristes a acenar.

Búzios da Praia da Areia Branca:
-- um dia
haveis de falar
unicamente do mar.


2

No fundo do mar,
há barcos, tesoiros,
segredos por desvendar
e marinheiros que foram morenos ou loiros.

Ali, não são morenos nem loiros,
-- são formas breves, a descansar,
sem ambições para os tesoiros
e de cabelos verdes dos limos do mar.

Serenos, serenos, repousam os mortos,

-- enquanto o mar
ensina o mundo a falar
a mesma língua em todos os pontos.

terça-feira, 27 de setembro de 2016

#24 - ONDAS, Sophia de Mello Breyner Andresen

Onde -- ondas -- mais belos cavalos
Do que estes ondas que vós sois
Onde mais bela curva do pescoço
Onde mais longas crinas sacudidas
Ou impetuoso arfar no mar imenso
Onde tão ébrio amor em vasta praia.



Dezembro 89

quinta-feira, 15 de setembro de 2016

#23 - CINZEIRO, Jorge Barbosa

À noute quando escrevo
Tenho fantasias
Que não chego a escrever
Nem conto a ninguém.

Esta, por exemplo,
De ver um paquete
No meu cinzeiro
De feitio oblongo!

Ponho nele, de pé,
As pontas dos cigarros.
São mastros
E chaminés fumegantes...

Os fósforos
São carregamento
E a cinza
São as cinzas das fornalhas...

Deito nele
Pedacinhos de papel que eu rasgo,
-- Restos de algum poema...
São cartas para longe.

Voam à roda do meu cinzeiro
Pequeninos insectos tropicais,
Companheiros nocturnos
Dos poetas da minha terra.

São os pássaros marinhos,
As gaivotas,
Que vêm espreitar
De perto o paquete.

Empurro-o com a mão
E o paquete lá vai,
Com o rumo traçado
Através do Atlântico.

Lá vai!
Os passageiros da primeira
Passeiam no «deck»
Ou jogam o «bridge».

E a rapariga loura
Estira-se indolente
Na cadeira de lona
A ler um romance...

No convés da terceira classe,
Um emigrante qualquer
Debruçou-se na borda
Olhando o horizonte...
Sou eu.

sexta-feira, 9 de setembro de 2016

#22 - BARCOS, Yolanda Morazzo

À querida ilha de São Vicente
de Cabo Verde.

       «Nha terra ê quel piquinino
       ê São Vicente ê quê di meu.»

Nas praias
Da minha infância
Morrem barcos
Desmantelados.

Fantasmas
De pescadores
Contrabandistas
Desaparecidos
Em qualquer vaga
Nem eu sei onde.

E eu sou a mesma
Tenho dez anos
Brinco na areia
Empunho os remos...
Canto e sorrio
À embarcação:
Para o mar!
É para o mar!...

E o pobre barco
O barco triste
Cansado e frio
Não se moveu...

Cambambe, 3 de maio de 1962

sexta-feira, 2 de setembro de 2016

#21 - A DOENÇA DA PEDRA, José Jorge Letria

Os barcos padeciam da doença da pedra:
estavam imóveis sobre os ancoradouros
como se não existisse a tentação do mar.
Tinham cordas enrodilhadas, remos ensarilhados,
velame estendido no convés, e, para além disso,
um imenso vazio a inundar os porões e as pontes.
Apodreciam, pacientes, à míngua de vento,
saudoso do embalo das ondas,
desnorteados pela falta de rota.
Eram barcos com uma embriaguez de vento
erguida na proa e uma coroa de algas
levantada nos mastros. Vinham altivos
do mar de outros séculos, arrecadando no bojo
um tesouro de vozes, uma bravura corsária,
uma cobiça de oiro. Deitava-me neles
com um sonho enredado nas malhas que tiram
sustento das águas e com um mapa
para sempre guardado na febre dos olhos.